Senhor, fazei de mim um instrumento de tua Paz

REFLEXÕES DE UM TEÓLOGO


A experiência dos discípulos de Emaús e a nossa (Lc 24,13-35).Caminho de Emaús: Encontro, Palavra e Missão. 

Esta passagem, do encontro do Senhor ressuscitado com dois de seus discípulos no caminho de Emaús, merece a nossa atenção particular uma vez que, aqui, o caminho representa toda a realidade dos momentos de medo e desânimo que qualquer discípulo do Senhor pode sentir em meio aos problemas que são passíveis de ocorrer durante o cumprimento do projeto de caminhada cristã.
Quando pensamos naqueles discípulos que caminhavam à noite, desorientados, seguindo o caminho de volta para a aldeia natal e estando frustrados – pois um grande projeto de vida, o messias Jesus, havia sido desfeito – certamente não podemos deixar de pensar na nossa própria história de vida e no projeto que nós temos assumido o de sermos hoje discípulos de Jesus.
Esta relação que deve existir entre Cristo e o crente no caminho, que, amiúde, se chama de “discipulado”, se impõe também na evangelização. Estar num caminho implica estar em movimento, de um lugar para outro. Portanto, ser discípulo de Jesus não é simplesmente “sentar-se aos pés de Jesus” para aprender dele. O discipulado não é uma condição estática nem acabada. Ser discípulo de Jesus significa caminhar com ele e estar onde ele está com todos os riscos que isto implica.[1]

1.3.1 O encontro: Aprender caminhando com o Mestre

A narrativa na primeira parte contextualiza o encontro entre os discípulos e o forasteiro que inicia uma caminhada até o destino deles. Estes dois discípulos fazem um itinerário, um caminho: o sair de Jerusalém e o retornar, ao final da narrativa, não são mencionados por acaso, mas tem um sentido teológico importante na obra lucana: o menino Jesus, segundo o evangelho de Lucas é apresentado ao Senhor no Templo de Jerusalém, e pela boca de Simeão, ele é reconhecido como “Cristo do Senhor” e ainda, “luz das nações e glória de seu povo, Israel” (Lc 2,22.26.32). O adolescente Jesus, aos doze anos encontra-se mais uma vez no Templo de Jerusalém, entre os doutores da Lei, ouvindo-os e interrogando-os (Lc 2,46), e por fim Jesus já no seu ministério decide subir a Jerusalém, lugar onde ele sofreria a paixão, mas ao terceiro dia ressuscitaria (Lc 9,22.44.51).
A cena bíblica, na introdução do relato de Emaús, lembra que os discípulos “conversavam sobre todos esses acontecimentos” (v.14). Antecede a narrativa do encontro com o Senhor Ressuscitado, todo o processo de Jesus. Os discípulos lembram todos os acontecimentos, ou seja, suas palavras e ações. A morte de Jesus encontra-se neste momento como uma grande frustração. A vida dos seguidores de Jesus perde a direção. O Mestre não está mais com eles, sentem-se desolados e confusos, pois apesar de tudo o que eles presenciaram: a prisão, a condenação, o sofrimento e a morte de Jesus, as mulheres vindas do túmulo anunciavam que o Senhor não estava mais lá. A reação da comunidade foi de dúvida, pois ainda não conseguiam reconhecê-lo.
Os dois discípulos tinham acompanhado Jesus na sua caminhada por toda a Palestina. Afirma o texto de Lucas que enquanto eles discutiam ao longo do caminho, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles. (v.15). A iniciativa é de Jesus, que não interrompe o assunto. A atitude de Jesus é caminhar com eles, aproximar-se é dispor-se a conhecer e sentir a necessidade do outro. Jesus vai com eles, escuta-os e inteira-se da situação.
Esse caminhar pode ser ocasião para um encontro transformador, de uma nova experiência, de mudança de mentalidade. O peregrino se aproxima, se interessando por eles e pelo que conversavam. O desânimo, o medo e a incerteza impediam os discípulos de enxergar o horizonte do caminho. A tristeza tirava-lhes o brilho do rosto. Suas esperanças haviam caído por terra, “seus olhos, porém estavam impedidos de reconhecê-lo” (v.16).
A Conferência de Aparecida propõe como primeiro passo no itinerário de seguimento de Jesus, o encontro pessoal com o Senhor Ressuscitado, para que haja uma experiência pessoal e profunda de fé.
A própria natureza do cristianismo consiste, portanto, em reconhecer a presença de Jesus Cristo e segui-lo. Essa foi a maravilhosa experiência daqueles primeiros discípulos que, encontrando Jesus, ficaram fascinados e cheios de assombro frente à excepcionalidade de quem lhes falava, diante da maneira como os tratava, coincidindo com a fome e sede de vida que havia em seus corações [...] .[2]
1.3.2 A Palavra: Aprender ouvindo o Mestre
O segundo momento da narrativa de Lucas insere-nos no aprofundamento do encontro, ou seja, no diálogo. O evangelista descortina toda uma expectativa devido à paixão e morte de Jesus, uma verdadeira decepção. O forasteiro encontra-os numa situação existencial de profunda tristeza, mas ele se interessa pela situação dos dois outros caminhantes. No plano histórico, sem o encontro com o Senhor Ressuscitado, o que aconteceu com Jesus é um escândalo, um acontecimento sem sentido; as próprias Escrituras, bem conhecidas pelos dois discípulos judeus, sensíveis às esperanças messiânicas, ficam seladas e sem sentido. “A antiga caminhada do povo de Deus rumo à libertação tem agora uma desembocadura histórica, na realidade de Jesus”.[3]
A caminhada do povo de Deus, como a do profeta de Nazaré, é marcada pelas credenciais históricas, mas também pelas desilusões, pelos sofrimentos e humilhações. A atividade de Jesus e seu destino se iluminam sobre este fundo da antiga história transmitida na Bíblia; mas Jesus é também o cumprimento e garantia da esperança definitiva das expectativas do passado.
O início deste diálogo dos discípulos com os forasteiros revela que a esperança dos discípulos em torno de Jesus era de um líder humano. Não tinham compreendido que Jesus era mais do que um morador de Nazaré e seu profeta. O evangelista remonta toda uma tradição do processo de Jesus, ou seja, todos os fatos ocorridos com o Senhor: “um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo: como nossos sumo sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram” (v.20).
A esperança dos discípulos parece estar mais voltada para um líder histórico e nacionalista. “Nós esperávamos que fosse ele quem redimiria Israel” (v.21). Os discípulos não conseguiam ir além da cruz, estavam parados e desencantados diante da morte de Jesus. A crise dos discípulos estava na incapacidade de superação da crise da cruz. Sem compreender qual era o verdadeiro projeto de Deus, lamentam o fracasso da libertação política esperada pela atuação de Jesus.
A identidade do discípulo missionário de Jesus Cristo nasce da experiência, do encontro vital com o Senhor, o ser discípulo é um dom destinado a crescer no qual a iniciação cristã dá a possibilidade de uma aprendizagem gradual no conhecimento, no amor e no Cristo.
A situação dos discípulos no caminho de Emaús era ainda muito paradoxal. Como em todos os relatos de aparição, é Jesus que toma iniciativa de se manifestar; aproxima-se dos discípulos, anda com eles no caminho, reprova-os criticando duramente suas atitudes: “Insensatos e lentos para crer tudo o que os profetas anunciaram” (v.25). Mostra que eles não conhecem a palavra de Deus que abre horizontes inesperados ao homem grudado nas suas pequenas certezas.
A atitude de Jesus para com eles é de um Mestre, pois explica para eles que o plano de Deus tem uma lógica diferente da lógica humana, destacando que o sofrimento faz parte desse desígnio divino e que se trata de um meio pelo qual Deus purifica e leva tudo à plenitude. O que aconteceu com o profeta de Nazaré não é, portanto um absurdo, “mas algo que encontra sua explicação nas Escrituras que apresenta o caso de vários justos perseguidos e reabilitados por Deus”.[4] Se as Escrituras ajudam a entender o escândalo da cruz, tem também o poder de esquentar o coração desiludido: “e começando por Moisés e percorrendo todos os profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito” (v.24).
O próprio Jesus mostra tudo o que na Bíblia se refere a ele, isso mostra duas coisas: “primeiro que Jesus realizou o que Deus pedia e prometia nas Escrituras do seu povo: liberdade e vida para todos. Segundo, mostra-nos que as primeiras comunidades foram descobrindo o sentido da vida de Jesus, graças à leitura da Bíblia”.[5] A Palavra de Deus na Bíblia é um lugar privilegiado onde a presença do Ressuscitado se manifesta. É na leitura comunitária da Bíblia que as pessoas encontram Jesus que dá sentido à vida, principalmente à luta pela justiça.
O pleno reconhecimento de Jesus acontece na fração do pão (v.30-31), que torna assim, essencial para reencontrar o Cristo. Destacando o pedido dos discípulos: “permanece conosco, pois cai à tarde o dia já declina” (v.29), Lucas talvez esteja querendo indicar que Jesus está presente e permanece com os seus por meio deste sinal. Sua presença é, porém, totalmente nova em relação daquela terrena, pois, quando os dois discípulos procuram segui-lo, Ele se torna invisível diante deles. (v.31). Por isso, “Jesus Ressuscitado que partilhou a alegria da mesa com seus discípulos após a ressurreição, preside ainda à mesa dos que o convidam a ficar, a parar com ele”.[6]
A grande questão do texto é a verdadeira experiência que podemos fazer com Jesus: Os dois discípulos parecem ter chegado ao destino. Jesus faz de conta que ia seguir o caminho, mas eles insistem para que se hospede junto a eles: Jesus aceita e se assenta à mesa com os dois. Então, “aqui temos a celebração da Eucaristia, a celebração da partilha, é nesse momento que eles o reconhecem”.[7]
Foi naquela refeição fraterna, que os olhos dos dois caminheiros se abrem e despertam para o discipulado e a missionariedade. Foi a breve memória do jeito de ser e fazer de Jesus, que permitiu abrir os seus olhos e reconhecer a presença viva do Ressuscitado: para os discípulos, o momento significativo foi o gesto da partilha com eles; a memória foi feita pelo caminho quando lhes explicava as Escrituras (v.27ss.), e a Palavra é compreendida a partir da experiência concreta do partir o pão.
Depois da Ressurreição, então, a primeira comunidade entra no silêncio de Cristo. Os discípulos tornam-se testemunhas que escutam a memória de Jesus. Eles falam e anunciam esta memória [...] A presença do Espírito é a única garantia para manter viva e inventiva esta memória.[8]

A refeição de Emaús fez os discípulos recordarem a Ceia Pascal do Mestre. Antes de seguir o caminho da cruz, Jesus se pôs à mesa, tomou o pão, deu graças, partiu e distribui-o a eles.
A Eucaristia é o lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus Cristo. Com este sacramento [...] Jesus nos atrai para si e nos faz entrar em seu dinamismo em relação a Deus e ao próximo. [...] Em cada Eucaristia, os cristãos celebram e assumem o mistério pascal, participando nele [...] Aí, o Espírito Santo fortalece a identidade do discípulo e desperta nele decidida vontade de anunciar com audácia aos demais o que tem escutado e vivido. [9]
Por isso, o que importa para Lucas é percorrer até o fim o caminho que leva ao reconhecimento de Jesus: a escuta da Palavra, que muda o coração, e o partir do pão em comunidade. Nesta altura os olhos se abrem para reconhecer a presença do Ressuscitado na comunidade de irmãos. De acordo com Casalegno, Lucas alcança seu objetivo:
Mostrar à sua comunidade que a fé em Jesus morto e ressuscitado corresponde perfeitamente ao plano de Deus e que ela amadurece lentamente por meio da compreensão das Escrituras e pela participação na Eucaristia.[10]
Embora misterioso, como o viajante desconhecido que se aproxima dos dois discípulos, Jesus Ressuscitado continua andando pelos caminhos dos homens sem os abandonar. Ele está vivo e presente nas vicissitudes da história, embora de outra forma, como Senhor da vida: “Neste lugar da memória, Deus continua a fazer-se presente na história e, hoje, dá-lhe sentido e rumo”.[11]
1.3.3 A Missão: Aprender agindo com o Mestre

Os dois discípulos voltam a Jerusalém, ao encontro dos apóstolos, e anunciam o que presenciaram. Ao seu testemunho os apóstolos ajuntam a confirmação: “É verdade! O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão” (v.34). Desse modo temos o círculo completo: Jesus se manifesta no caminho dos homens, e Pedro, o chefe da Igreja, pode confirmar isso, porque ele próprio viveu a experiência. Os discípulos ao reconhecerem Jesus, retomam o caminho para Jerusalém: há um novo olhar, uma nova motivação, uma luz no horizonte.
“Em virtude de sua própria dinâmica interna, a fé precisa ser conhecida, celebrada, vivida e cultivada na oração. E como ela deve ser vivida em comunidade e anunciada na missão, precisa ser compartilhada, testemunhada e anunciada.[12]

Há uma mudança radical na vida destes caminhantes com o Senhor, eles fazem uma opção e ao reconhecerem Jesus vão anunciar a própria experiência feita no caminho e na casa ao redor da mesa: uma experiência de fé pascal. Mas não está concluída a caminhada da fé pascal. Os dois discípulos percorreram de novo o caminho que os separou do grupo dos apóstolos e voltam a Jerusalém. Aqui eles deveriam dar o anúncio da páscoa, recebem-no os que estão ao redor de Simão. Uma fórmula de fé pascal, como ressoava nas primeiras comunidades cristãs, marca o ponto de encontro e reconhecimento dos discípulos:
A palavra, o pão e a profissão de fé são os três sinais de reconhecimento do Senhor e, ao mesmo tempo, as três etapas de uma caminhada que toda comunidade cristã pode fazer confrontando-se com a caminhada dos dois discípulos de Emaús.[13]
Não basta a compreensão das Escrituras, nem basta partir juntos os pães. A fé no Ressuscitado é completa quando se pode confrontar e expressar na comum profissão junto de Simão e os Onze. É evidente que por meio do tema do “caminho”, muito frisado no relato (vv.15.17.32.35), o evangelista quer fazer uma referência ao caminho concreto de cada batizado, em todos os tempos e em todo lugar, cheios de dificuldade e provações, porém sustentado pela ação poderosa do Ressuscitado. Por isso, “a narração é uma tácita exortação ao cristão para não ficar desnorteado perante o problema do mal no mundo, mas iluminado pela Escritura, se colocar a serviço do desígnio salvífico de Deus, que vence o mal e salva a história”.[14]
De acordo com o exemplo dos discípulos de Emaús, nós também temos necessidade desta experiência de re-encantamento na fé. O coração aquecido lhes impulsionou para o dinamismo, para a missão: com ardor renovado pela presença e proximidade com o Ressuscitado que os olhos se abrem, o coração se aquece. Agora o novo ardor se espalha, sai do coração e chega à mente, à consciência e move os pés que saem a evangelizar.
Entre as sombras do dia em declínio e a escuridão que ameaçava o ânimo, aquele caminhante era um raio de luz que despertava a esperança e abria suas almas ao desejo da luz plena. “Permanece conosco”, suplicaram-lhe. E ele aceitou. Dentro em pouco, o rosto de Jesus desapareceria, mas o Mestre “permaneceria” sob os véus do “Pão partido”, diante do qual seus olhos se haviam aberto. [15]
O encontro de Jesus com os discípulos de Emaús se deu num clima de diálogo e comunhão fraterna: explicar as Escrituras e partir o pão fez-lhes retornar ao caminho de Jerusalém com nova disposição de vida, com o coração aquecido, eles se põe no caminho ao encontro dos outros discípulos para contar a alegria do encontro com o Mestre, assumir a missão de formar comunidades e anunciar a boa nova de Jesus Cristo: os discípulos voltam à comunidade com um novo olhar. Refazem o caminho, agora com um espírito novo, com melhor compreensão da missão. O chamado à missão decorrente do nosso batismo implica uma resposta livre, um ato de confiança em Deus.


                                                              Dc. Joaquim Oliveira da Cruz  (Orionita).


[1] COOK, Guilherme. Evangelização é Comunicação. Belo Horizonte. Editora Betânia. 1980, p. 152.
[2] DOCUMENTO DE APARECIDA (nº244). Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 13-31 de maio de 2007. 4ª ed. São Paulo: Paulus. p. 114.
[3] FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI,Bruno. Os evangelhos II. 4ª ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 243.
[4] CASALEGNO, Aberto. Lucas: a caminho de Jesus missionário. São Paulo: Loyola, 2003 p.195.
[5] STORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 2006, p.213.
[6] FABRIS, R., Os evangelhos II. 4ª ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 243.
[7] ISTORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Lucas. São Paulo:Paulus,2006,p.214.
[8] ROY, Ana. O beijo de Deus: provocação à vida religiosa. São Paulo: Escala Editora, 2004, p.53.
[9] DOCUMENTO DE APARECIDA (nº251). Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 13-31 de maio de 2007. 4ª ed. São Paulo: Paulus, p. 117/118.
[10] CASALEGNO, Alberto. Lucas: a caminho de Jesus missionário. São Paulo: Loyola, 2003, p.196.
[11] ROY, Ana. O beijo de Deus: provocação à vida religiosa. São Paulo: Escala Editora, 2004, p. 54.
[12] CNBB. DIRETÓRIO NACIONAL DE CATEQUESE (Nº 84). São Paulo: Paulinas, p. 64.
[13] FABRISR. Os evangelhos II, p. 243.
[14] CASALEGNOA. Lucas: a caminho de Jesus missionário, Loyola, 2003, p, 196.
[15] CARTA APOSTÓLICA MANE NOBISCUM DOMINE do Sumo Pontífice João Paulo II, ao episcopado, ao clero, aos fiéis, para o ano da eucaristia (nº 01). 3ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 3. 


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